1. De quê?! – 7:17 (Bernardo Ramos)
2. Pro Bernardo – 2:40 (Itiberê Zwarg)
3. Gratidão – 8:15 (Bernardo Ramos)
FICHA TÉCNICA RESUMIDA
Produção: Sylvio Fraga e Bernardo Ramos
Gravação: Duda Mello no Estúdio Rocinante
Mistura: Duda Mello
Masterização: Greg Calbi
Direção musical: Bernardo Ramos
Projeto gráfico: Mariana Avillez
TEXTO DE SYLVIO FRAGA
Bernardo é um sonhador que estuda. Ele é um pensador que tem fé no
instinto e no corpo. Seu processo como compositor tende a ser demorado e nos últimos tempos um Brasil despedaçado acentuou sua tendência de compor explicitamente por pedaços. Por isso nos surpreende, em meio aos contrastes, a coesão não só no interior de cada obra, mas também na relação entre elas.
Neste disco algumas peças surgiram de métodos ligados à música serial e às infinitas possibilidades desse universo que altera radicalmente o costumeiro modus operandi da inspiração, potencializa e organiza a composição por partes; além de abrir um campo fertilíssimo para o improviso. Só as duas baladas nasceram prontas, a despeito da desconfiança do próprio compositor.
Em meio à vocação de caliça da música dodecafônica ouço sempre o coração lírico do Bernardo, que recebeu a devida educação pela canção brasileira. Ele sabe a canção brasileira e precisa do Djavan tanto quanto precisa de Webern. Imagino as baladas como cartas de amor a Nana Caymmi, sua guitarra parece almejar uma letra que existe mas não foi escrita, característica de muitos grandes instrumentistas. E as não-baladas, os improvisos mais ossudos, guardam em seu seio a voz humana.
Inclusive é preciso falar da formação insólita do quinteto: um guitarra trio
com trombone e voz. Beth Dau (voz) e Bruno Aguilar (baixo), parceiros desde quando integravam a Itiberê Orquestra Família, se juntam ao baterista mineiro Felipe Continentino e ao trombonista capixaba Rafael Rocha. Joana Queiroz (clarineta e clarone), também antiga companheira musical de Bernardo, participa como se fosse do grupo. São artistas singulares na cena brasileira e todos improvisadores de ofício. Importante ressaltar que essa formação nasceu antes pela escolha dos artistas do que pelos instrumentos que eles tocam, mas resultou numa rara paleta de timbres.
O disco abre com Intensidades nº1 e entendemos que não se trata de jazz
(velho termo problemático) nem de instrumental “brazuca”. A guitarra solo faz um preâmbulo e chama o resto do grupo – dali saem juntos pelo sertão sendo afetuosos e violentos. Não é à toa que Glauber Rocha é herói de Bernardo.
Associo esta peça a uma incursão cangaceira (levando uma guitarra com a areia certa de abrasividade) aos palcos eruditos na Europa. “Intensidades” não tem um único solo de improviso: é uma peça de câmara com liberdades e linguagens populares. E vale relacionar o plural do título com o encadeamento das partes. São capítulos de uma trama com espécie de refrão, irresoluções que justapostas pela mão sabedora se resolvem. No início de Sem barganha o trio de base toca em formação de canavial, ondulando juntos ao vento do instante. É a arte preciosa de tocar aberto, muito diferente de tocar free. A melodia está no coração de todos, mas sem vir à tona.
Aqui Bernardo, Bruno (baixo) e Felipe (bateria) investigam seu amor por Paul Motian e Masabumi Kikuchi. O tema então surge maduro e cristalino na voz e no clarone e nos leva até o improviso elegante meio apaixonado de trombone que dialoga sem medo com a tradição baladeira.
Para fechar o lado um temos Cangaço, peça que dá título ao trabalho, na qual o Bernardo arranjador e compositor são um só, como numa parceria de letra e música. De uma trama atonal ele extrai a água mais refrescante do sertão. Creio que o ancestral mais próximo dessa obra e performance seja a “Série de arco”, de Hermeto Pascoal, com seu grupo extraordinário da década de 1980.
Mas a obra de Bernardo respira e contrasta de outra maneira – e digere uma miríade de outros aprendizados do século XX, inclusive o próprio alagoano.
É o cangaço do século XXI, Bernardo se entendendo e se desentendendo com seus heróis. O improviso do baixo merece a atenção de todos.
O lado dois abre homenageando Arrigo Barnabé, cancionista íntimo do
dodecafonismo. De quê faz referência ao Arrigo gritar, quando toca “Sabor de veneno”, Sabor de quê?!, e a plateia responde: de veneno! Bernardo sempre lamenta que Elis Regina não teve tempo de cumprir o que declarava: cantar Arrigo. Nessa peça ele faz um improviso inspirado e pedregoso que de fato mora num sertão desromantizado. Voz e trombone formam um naipe de aboios. Essa é a peça que mais perambula em fragmentos e miragens, com os macacos na cola do bando, nômade e portanto sempre em casa. Pro Bernardo, composta por Itiberê Zwarg, é uma peça curta que Bernardo resgatou de partituras antigas dos tempos da Orquestra. É a única não autoral do LP, mas escrita originalmente para quinteto de baixo elétrico, Bernardo a adaptou para quatro guitarras e um baixo elétrico. Ele enxergou que essa peça brilharia, literalmente, com guitarras: os acordes aglomerados no agudo cintilam, a dissonância é acolhedora. Os overdubs têm seu lugar digníssimo.
Gratidão parece um standard atemporal, com forma alterada sem alarde.
O trombone começa o tema e parece que se transforma na voz que pega o fio da melodia e segue. Depois se entrelaçam com uma delicadeza comovente.
Imagino uma espécie de tragédia: o som do trombone quer amar o som da voz, mas isso é impossível porque um é humano e o outro não. Ou: o trio de base é a banda de um casal que dança. Devaneios à parte, ressalto a repetição do tema na guitarra, cantado com calma e confiança no que é estritamente necessário dizer. No improviso-conversa entre guitarra e trombone, a base-conversa entre baixo e bateria merece igual destaque. Uma nova seção surge no fim e nos ensina que o sentimento de gratidão é coisa de se celebrar.
credits
released July 12, 2019
Bernardo Ramos: guitarra
Beth Dau: voz
Bruno Aguilar: baixo acústico e elétrico
Rafael Rocha: trombone
Felipe Continentino: bateria
Joana Queiroz: clarineta (faixas 2 e 3) e clarone (faixa 2)
Guitarist, composer, and producer, Bernardo launched his first solo album, Cangaço, in 2019, on the Rocinante record
label;
Gesto (Gesture) (2016), recorded for the Japanese label Spiral Music; Bamboo (2010) and Abertura (Opening) (2012).
According to Itiberê Zwarg,
"His rhythmic, harmonious, melodic, and interpretative skills are unlimited.”...more